quinta-feira, 25 de março de 2010

Andamos a escrever mais sobre sexo, mas será que temos jeito?

Luís Francisco
10.02.2010

Os brasileiros são melhores do que nós, os poetas superam os romancistas. Será por causa das limitações da língua, falta-nos tradição literária ou somos demasiado pudicos? Os diagnósticos variam, mas os sintomas são comuns: em Portugal, (ainda) escrevemos pouco sobre sexo e nem sempre sai grande coisa
Não é fácil encontrar na literatura portuguesa bons nacos de prosa ou passagens poéticas com conteúdo sexual. Que o diga António Mega Ferreira, que em 2005 publicou uma antologia do "Erotismo na Ficção Portuguesa do Século XX". Pesquisou exaustivamente décadas de produção literária e o trabalho revelou-se "muito difícil", por falta de matéria-prima. Em quantidade e, sobretudo, em qualidade. Será que não temos mesmo jeito para verter em romance essas coisas do corpo?
O hoje presidente da Fundação do Centro Cultural de Belém não deixa margem para segundas leituras: "Encontrei coisas horrendas ao longo da pesquisa." A escritora Lídia Jorge também não tem dúvidas: "Somos bons noutras coisas, nessa não." Mais contundente, o jornalista e escritor Miguel Sousa Tavares assume que, em Portugal, "escreve-se muito mal sobre sexo". Já o crítico Pedro Mexia acha que o problema não é só português, está "em todo o lado", devido à "dificuldade do tema".
Mas se Mega Ferreira tivesse alargado o seu horizonte à literatura de língua portuguesa, o resultado poderia ser bem diferente. Autores como João Ubaldo Ribeiro e Rubem Fonseca, ambos do Brasil, aparecem com frequência quando se pedem bons exemplos de literatura com conteúdo sexual, erótico. O escritor angolano José Eduardo Agualusa menciona ainda o seu compatriota Ruy Duarte de Carvalho. Será que as palavras do português de cá não ajudam?
"'Bunda' é muito melhor do que 'rabo'. 'Seios' é piroso, 'mamas' é cru. 'Pau', no Brasil, resulta e por cá vai-se generalizando. Mas a palavra começada por 'c' nem poderia aparecer neste artigo..." Inês Pedrosa, escritora e directora da Casa Fernando Pessoa, regista uma série de dificuldades com o léxico. "A nossa língua anda muitas vezes por dois extremos: o lírico e o obsceno, grosseiro. Às vezes faltam as palavras", completa Lídia Jorge
Será, então, um problema da língua? "Não. Se fôssemos realmente bons conseguíamos sê-lo com a nossa língua", sentencia Mega Ferreira. Miguel Sousa Tavares concorda: "Tem a ver com a capacidade dos escritores; o português do Brasil é melhor, mas não é só isso..." Pois, conclui, José Eduardo Agualusa, "os escritores brasileiros, de uma forma geral, são muito melhores do que os portugueses quando se trata de escrever sobre sexo".
Mas Portugal tem e teve bons escritores. Haverá alguma razão para que o sexo apareça tão pouco e de forma tantas vezes desastrada ao longo de décadas de produção literária? Bom, não será apenas uma. Há um conjunto de razões, a começar pelo facto básico de que "o sexo é diferente a Sul do Equador", como constata Mega Ferreira, que fala de "um pudor enormíssimo" entre nós.
A falta de naturalidade aparece, assim, como o pecado maior das nossas letras nesse campo. "A literatura portuguesa está cheia de pudor, falsamente vitoriano", analisa o escritor Baptista-Bastos. "A tradição do neorealismo foi desastrosa, com um estilo absolutamente piroso a tratar de sexo, e as gerações seguintes ficaram marcadas", aponta Miguel Sousa Tavares. Talvez isso explique o recurso maciço a metáforas sempre que o sexo entra em cena. Que traz consigo outro problema: "Algumas metáforas são assustadoras", avisa Pedro Mexia.
Inês Pedrosa acha que elas não fazem falta nenhuma. "O sexo tem uma força em si que dispensa a metaforização. Esta é usada para esconder as palavras. Mas pele é pele, corpo é corpo...", diz a escritora. Mas também isto não é uma lei absoluta: "Hoje em dia, na crítica, parece que a metáfora está 'out'; tudo o que não pareça muito cerebral parece que já não merece ser literatura."
A força da poesia
Apesar de tudo, evitar tratar as coisas pelos nomes pode não ser um golpe de morte na intenção de criar uma atmosfera de tensão carnal. Nem sempre a linguagem mais explícita teve a aceitação pública que hoje vai tendo e os escritores foram encontrando caminhos que não passassem pela camuflagem metafórica. Às vezes, como lembra Baptista-Bastos, há que oferecer ao leitor uma "ampla margem dedutiva". Leia-se "O Primo Basílio", de Eça de Queirós, romance em que Mega Ferreira situa a "primeira inscrição do erotismo na literatura portuguesa":
"Basílio achava-a irresistível; quem diria que uma burguesinha podia ter tanto chique, tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre as mãos, beijou-lhos; depois, dizendo muito mal das ligas 'tão feias, com fechos de metal', beijou-lhe respeitosamente os joelhos; e então fez-lhe baixinho um pedido. Ela corou, sorriu, dizia: 'não! não!" E quando saiu do seu delírio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate; murmurou repreensivamente:
- Oh, Basílio!
Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação nova; tinha-a na mão!"
Sexo oral no século XIX?! Foi por estas e por outras que o próprio pai de Eça, apesar de conquistado pela força da narrativa, lhe puxou as orelhas. A descrição de cenas eróticas sempre chocou algumas consciências. E é por isso que os poetas, com a sua abordagem teoricamente mais desligada da realidade, beneficiam de um maior à-vontade. O que eles dizem não é bem o mundo, é poesia, pensará o cidadão comum.
Será essa a explicação para a larga vantagem que a poesia leva sobre a prosa nesta área do erotismo? Não, diz Miguel Esteves Cardoso. O escritor e colunista considera que "os melhores escritores sobre sexo tendem a ser os melhores escritores". No caso português, os melhores são poetas. "Camões e, mais recentemente, Vitorino Nemésio, Mário Cesariny, Herberto Hélder, João Miguel Fernandes Jorge e Joaquim Manuel Magalhães." Conclusão, para que não restem dúvidas: "Na prosa somos um desastre."
Será, talvez, porque os portugueses "têm mais jeito para expressar a frustração do que o desejo", na visão do escritor Rui Zink. Também para ele, os poetas levam a melhor. "Para expressar o desejo e o corpo, escolhemos a poesia. Assim, de cor, penso em [António] Botto, Florbela [Espanca], Natália [Correia], Eugénio [de Andrade], [Maria] Teresa Horta, Al Berto, [Alberto] Pimenta... Já na prosa somos furtivos, tímidos ou, então, temos actos falhados."
Pode haver várias tentativas de explicação para esta inabilidade literária, numa área que é, e será sempre, "um campo minado". Mega Ferreira fala da "tardia tradição do romance" entre nós, mas também dos "50 anos de ditadura salazarista", com a sua lógica de "censura e marginalização do tema sexual". Um véu pesado, também com uma componente religiosa muito forte, que deu origem a uma "cultura casta e lírica", analisa Lídia Jorge.
A "prova de fogo"
Todos os que escrevem têm consciência da realidade que os rodeia no que respeita aos espinhos do erotismo escrito. Uma consciência formal, que se prende com os gostos do público, o seu estilo pessoal ou a contundência da crítica. Mas também - porque dentro de um escritor há sempre uma pessoa - uma consciência pessoal. No momento de escrever sobre sexo, será que os escritores não pensam: "O que é que a minha mãe [ou o meu filho, ou...] vai pensar disto?" Será que, de algum modo, se autocensuram?
"Claro, como aliás acontece com qualquer cena relativamente 'inspirada na vida real'", assume o escritor Francisco José Viegas, apoiado por António Mega Ferreira, também ele com obra publicada: "Tenho consciência dos condicionalismos do passado e do presente e não sei se teria talento para evitar os alçapões." Já Miguel Sousa Tavares garante não ter "qualquer autocensura" - "A minha preocupação é não ser ridículo, não forçar." Tese, antítese... e síntese. Lídia Jorge: "Somos seres complexos, às vezes fazemos censuras de que não nos damos conta."
Inês Pedrosa, por seu turno, está-se "nas tintas" para o que as pessoas possam pensar. Considera "um desafio escrever sobre sexo" e o seu livro mais recente, "A Eternidade e o Desejo", termina exactamente com um orgasmo feminino. "Se é verdade que um romance caminha para o seu clímax, então é um final muito apropriado!", brinca. Mas recorda-se de receber "alguns conselhos pré-publicação para 'esconder' o orgasmo mais no meio do livro"... Ignorou-os e o seu próximo trabalho terá ainda mais cenas eróticas, porque a autora escolheu abordar o tema da amizade masculina. E, quando os homens se juntam, falam inevitavelmente de sexo.
O mesmo parece acontecer aos escritores quando enfrentam a folha em branco. Lídia Jorge: "Escrever é fazer amor com o mundo. Há uma pulsão erótica na escrita, como em qualquer arte. Escreve-se sobre o destino. E o amor tem uma farta fatia do destino. E o sexo tem uma farta fatia do amor." E é por isso que os escritores arriscam constantemente enfrentar essa "prova de fogo" do erotismo. Mesmo que muitos acabem por se queimar.
Pedro Mexia acha que é, "como no cinema, das coisas mais difíceis de fazer" e salienta que na literatura "há sempre dois extremos, ambos perigosos: o obsceno e o kitsch". A ter de escolher, coisa que sucede muito frequentemente quando se lê sobre sexo, ele prefere o primeiro. Mas há, entre os autores, quem evite "andar nessa corda bamba entre o obsceno e o kitsch".
António Lobo Antunes, por exemplo, já confessou a sua falta de jeito para as cenas eróticas e não se mete nisso. Outros - e génios! - antes dele fizeram o mesmo. "O [Alfred] Hitchcok dizia que não podia filmar uma cena de sexo por causa dos planos de corte, que falseiam a realidade. Só em plano-sequência...", lembra Mexia.
"Vigilância acrescida"
Será pelo desafio da escrita ou pela incontornabilidade do tema quando falamos da existência humana, a verdade é que o sexo acaba quase sempre por irromper numa história. E, quando isso acontece, o que faz o escritor? "É preciso atenção, mas a abordagem tem de ser natural e sem abdicar do estilo próprio e do tom da obra", avisa Miguel Sousa Tavares.
É por isso que Lídia Jorge não procura "escrever cenas demasiado expostas, exibicionistas" - "A nossa cultura não o faz e eu não o faço. É cultural e é, também, pessoal." Regra máxima: "A sugestão é mais importante do que a exibição. A Agustina [Bessa-Luís] até costumava dizer que quem precisa mais de exibição são os impotentes."
Francisco José Viegas bate mais forte. "O que me irrita mais é quando um autor, sobretudo quando escreve na primeira pessoa, tem de falar do imenso, forte, brutal, devastador, grosso pénis erecto. É uma mania exibicionista e, já agora, 'brochante' na maior parte das vezes, porque, vê-se logo, quem faz pouco sexo, escreve sobre o assunto."
Também ele prefere a sugestão à exibição. "As cenas de sexo, ou os diálogos sobre sexo, correm muito mais o risco de desaguar no puro mau gosto. Acho que prefiro sugerir, abrir um pouco o jogo, mas deixar a coisa suspensa. Ou então ser decididamente 'brutal'." Quando tem de ser, tem de ser. Lídia Jorge recorda uma personagem do seu romance "O Vento Assobiando nas Ruas", uma rapariga "um pouco 'atrasada', que não sabe autocontrolar-se e, por isso, conta com toda a clareza a expressão do seu desejo". Não teve reacções negativas.
Também não há forma de prever ao milímetro o que as pessoas vão pensar. Francisco José Viegas lembra-se de uma crítica em que se falava de um "erro fatal" no romance "Longe de Manaus" - o escritor tinha 'assassinado' uma personagem feminina "exactamente quando ela se preparava para uma cena de sexo com outra mulher"... Na verdade, comenta Inês Pedrosa, "temos tendência para pensar que o país é mais conservador do que realmente é".
"Nunca é um exercício fácil, correm-se múltiplos riscos e, muitas vezes, ser politicamente correcto atrapalha as coisas", regista Patrícia Reis. A escritora e jornalista salienta ainda outra variável nesta equação a múltiplas incógnitas: "O sexo é entendido de forma diferenciada. Somos leitores diferentes ao longo da vida, do mês, da semana. O que hoje nos choca, amanhã pode ser indiferente. E o sexo é valorizado e desvalorizado numa vertigem doida desde que as novas tecnologias o banalizaram."
Usando assumidamente um eufemismo - "Não lhe chamaria autocensura, antes vigilância acrescida" -, Mega Ferreira explica que o escritor "corre sempre o risco de, ao dar destaque a uma determinada cena, esta ficar presa no seu conteúdo erótico, apenas uma cena, sem mais do que ela própria". Ou seja, de não contribuir em nada para o fluir da história. Um problema para o qual Francisco José Viegas diz ter uma solução: "O ideal é deixar as personagens a foder, lá dentro, no quarto, e nós falarmos de outra coisa enquanto eles fazem a coisa como deve ser."
Maus exemplos
O problema é quando entramos por ali adentro e a coisa não corre mesmo nada bem. Veja-se este naco de prosa de "O Codex 632", um dos vários "best-sellers" de José Rodrigues dos Santos:
"Parou de comer e fitou-o com uma expressão insinuante. 'Sabe qual é a minha maior fantasia de cozinheira?'
'Hã?'
'Quando um dia for casada e tiver um filho, vou fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas.'
Tomás quase se engasgou com a sopa.
'Como?'
'Quero fazer uma sopa de peixe com o leite as minhas mamas', repetiu ela, como se dissesse a coisa mais natural do mundo. Colocou a mão no seio esquerdo e espremeu-o de modo tal que o mamilo espreitou pela borda do decote. 'Gostava de provar?'
Tomás sentiu uma erecção gigantesca a formar-se-lhe nas calças. Incapaz de proferir uma palavra e com a garganta subitamente seca, fez que sim com a cabeça. Lena tirou todo o seio esquerdo para fora do decote de seda azul (...). A sueca ergueu-se e aproximou-se do professor; em pé, ao lado ele, encostou-lhe o seio à boca. Tomás não resistiu. Abraçou-a pela cintura e começou a chupar-lhe o mamilo saliente."
Há gostos para tudo, mas esta é uma das cenas mais vezes lembrada quando se fala em maus exemplos de sexo na literatura portuguesa. Uma quase unanimidade que o autor não comentará neste artigo, por se ter escusado a prestar declarações.
Resta-lhe a consolação de aparecer em boa companhia quando se pedem exemplos de passagens eróticas particularmente más. Pedro Mexia começa por se lembrar do "leite de mamas", mas como, no seu entender, "isso nem é bem literatura", avança para algumas passagens "de extremo mau gosto" escritas pelo Nobel José Saramago.
Nem todos são cruéis "ao ponto de dizer nomes", como confessa Rui Zink, que se limita a constatar que "a cabeça dos homens portugueses é pouco fluida quando chega às coisas do corpo". Por pudor ou memória selectiva, José Eduardo Agualusa também fala no geral: "Há escritores excelentes que produziram frases más sobre sexo, mas graças a Deus não me recordo de nenhuma."
Já Patrícia Reis lembra um livro "cujo título é maravilhoso e verdadeiro: 'O Amor é Fodido', de Miguel Esteves Cardoso". Mas... "O conteúdo, as cenas mais concretas de sexo, a linguagem gratuitamente pornográfica não me adiantou nada." De um livro inteiro para uma passagem específica, eleita pelo crítico Eduardo Pitta:
"Dois soldados, em vez de enterrarem os cadáveres dos seus amigos mortos em batalha, escaparam às ordens, e num pequeno bar, ainda com o uniforme manchado, mandam vir uma mulher - uma prostituta - e os dois sobem com ela para um quarto e fornicam-na. Um colando-lhe o pénis na boca e o outro fornicando-a por trás como fazem os cães às cadelas e os homens às mulheres ou a outros homens."
O livro é "Água, Cão, Cavalo, Cabeça", o autor Gonçalo M. Tavares. "Se houvesse um prémio em Portugal [para más passagens eróticas], haveria alguns bons concorrentes", avalia Mega ferreira. "Incluindo pérolas de grandes escritores. Como já dizia o outro: 'Homero também dormita'..."
A questão não é académica. No Reino Unido há mesmo um prémio anual para Mau Sexo em Literatura, este ano conquistado por Jonathan Littell, com o romance "As Benevolentes". Vendeu mais de um milhão de exemplares por essa Europa fora e o júri destaca a genialidade da obra. Bom, pelo menos da maior parte: "Passagens como 'Vim-me subitamente, um jorro que me esvaziou a cabeça como uma colher raspando o interior de um ovo pouco cozido [tradução livre]' garantiram o prémio a 'As Benevolentes'", anunciou a "Literary Review", promotora de uma iniciativa que este ano tinha na lista de finalistas nomes tão consagrados como os de Paul Theroux, Nick Cave, Philip Roth ou Amos Oz. Entre outros.
O fogo de Jorge de Sena
Mas deixemo-nos de negativismos. Fechada a cortina sobre as más cenas de sexo, o que haverá a destacar no extremo oposto? Onde estão os bons exemplos? As respostas surgem agora mais soltas e abundantes - talvez que, por serem raros, acabem por gerar maior unanimidade.
Miguel Sousa Tavares fala de "Sinais de Fogo", de Jorge de Sena, romance também citado por Mega Ferreira, que o considera uma "obra invulgar", onde a "instância sexual só não está do princípio ao fim porque se trata de uma obra inacabada..." Patrícia Reis chama-lhe "um livro poderoso". Rui Zink também escolhe Jorge de Sena, mas prefere "O Físico Prodigioso".
José Eduardo Agualusa lembra vários romances de Rubem Fonseca e destaca ainda "O Sorriso do Lagarto", de João Ubaldo Ribeiro; "Rakushisha", de Adriana Lisboa; e "Os Papéis do Inglês", de Ruy Duarte de Carvalho. O primeiro merece igualmente a preferência de Pedro Mexia e Francisco José Viegas. Diz este: "O livro de língua portuguesa onde há melhores cenas de sexo é 'A Grande Arte', de Rubem Fonseca. Ele é muito bom a escrever essas cenas porque, justamente, não quer escrever 'cenas de sexo'. Quer falar de homens e mulheres."
Mas Viegas guarda ainda espaço para Mónica Marques e a sua "Transa Atlântica", com uma cena de 'ménage à trois' que é "de uma elegância festiva, feliz e deliciosa". Eduardo Pitta vai ainda mais longe no elogio. Para o crítico, a melhor cena de conteúdo sexual da literatura de língua portuguesa é... "Todas as de 'Transa Atlântica'. Overdose absoluta, sem metáfora. Pau e xoxota mesmo. Um clássico do género." E a seguir destaca Al Berto, por "Lunário", a "primeira narrativa portuguesa 'gender fucker'".
Outras referências: Maria Isabel Moura (Rui Zink); Inês Pedrosa (Patrícia Reis); Francisco José Viegas (Pedro Mexia); Carlos de Oliveira, em "Uma Abelha na Chuva" ("um primor de sugestão erótico-sexual, na sequência em que D. Maria dos Prazeres viaja na charrette, sente-se atraída pelo cocheiro", diz Baptista-Bastos); Miguel Esteves Cardoso (Mega Ferreira); Almeida Faria (Francisco José Viegas).
E ainda José Cardoso Pires. Em "A Balada da Praia dos Cães", Francisco José Viegas aprecia a safadice e Rui Zink elege mesmo como melhor cena da literatura portuguesa de conteúdo erótico "a masturbação revoltada do inspector Elias". É assim:
"Elias masturba-se. Sempre de olhar parado, vendo para dentro e a desfocar-se (o olhar de quem se deixa ir de viagem) enquanto a mão, o rosto e a boca dela o trabalham lá em baixo, e tudo se concentra. Elias vai num espaço fechado, numa caixa de espelhos, a cabeça solta, desligada dele. O pénis recurvo não pára de ser percorrido por uma cadência saboreada e insistente, e ele de olhar imóvel, diante dum vidro (que já não é de espelho, mas transparente) diante dum pára-brisas, um autocolante, um espelho retrovisor, para baixo e para cima, as molas do assento a rangerem num movimento mecânico e igual. Sempre."
A vez delas
Se há algo que nos surpreenda nestas escolhas, talvez seja a presença marcante de mulheres autoras. O que permite levantar a eterna questão de haver, ou não, uma escrita feminina, por oposição ao estilo dos homens, tradicional, de tratar as coisas do sexo. Apesar de Inês Pedrosa não querer que lhe falem "disso" da escrita feminina e masculina, tem mesmo de ser...
Francisco José Viegas: "Elas são melhores do que os homens e estão a escrever mais sobre sexo - não sei se isso é bom ou mau -, mais e mais despudoradamente, com mais imaginação e até com mais melancolia." Mega Ferreira: "As mulheres, porventura, ultrapassam melhor o pudor quase ancestral que nos tolhe; talvez tenham maior capacidade para escrever com mais à-vontade - talvez porque nomear o sexo, escrever sobre sexo, seja uma forma de emancipação."
Lídia Jorge não vê a coisa assim, até porque acha que "o esforço de transgressão" foi feito pela "geração anterior" à sua. E, já agora, também não aceita que se pense no sexo como "capacidade de expressão de uma literatura": "É uma prova de fogo um escritor ser capaz de entrar na intimidade sexual e ser capaz de a descrever com eficácia e elegância. Mas não é a medida para avaliar uma literatura."
Seja como for, não é mais difícil para uma mulher expor-se dessa maneira do que para um homem? Analisa Inês Pedrosa: "As mulheres são muito penalizadas quando escrevem sobre sexo. Há um discurso libertário, mas a verdade é que continua a impor-se aquele estereótipo de que um homem com muitas relações sexuais é um garanhão e uma mulher tem de ser recatada, se se atreve a escrever sobre isso é porque é uma devassa. As mulheres pensam em afectos e não têm corpo..."
Mas têm. E estão a falar cada vez mais dele. Neste como noutros campos, talvez elas sejam a nossa maior esperança.

O Erotismo em português é piroso e risível

Por Isabel Lucas
4 Janeiro 2008

Das razões de pouco se escrever sobre sexo em português
"Às vezes, em roda de amigos, citamos uma série de passagens do romance contemporâneo sobre sexo. Geralmente são citações pirosas, kitsch, muito risíveis. Não sei se se pode daí depreender que os escritores portugueses não têm intimidade com o sexo; mas a generalidade das descrições são muito pirosas." Francisco José Viegas, jornalista, escritor, autor de romances como Longe de Manaus ou Lourenço Marques (Asa), tenta encontrar explicação para o que o crítico literário Pedro Mexia considerou ser, numa crónica antiga, "um trauma da ficção portuguesa": a maneira como por aqui se fala ou escreve sobre sexo. "É foleira", disse.
E disse-o a propósito de um dos excertos mais comentados nas páginas literárias, na blogosfera, mas, sobretudo, nas tais rodas de amigos a que se refere Viegas. O romance em causa é Codex 643 (Gradiva), de José Rodrigues dos Santos, e a passagem, a que se segue: "Quando um dia for casada e tiver um filho, vou fazer sopa de peixe com o leite das minhas mamas." A frase dita por uma estudante sueca do programa Erasmus dirige-se a Tomás, um professor catedrático de 35 anos. Não há um palavrão, mas o indício de todo o ambiente: "Uma erecção gigantesca a formar-se nas calças de Tomás. (...) Lena tirou todo o seu seio esquerdo para fora do decote de seda azul (...) Aproximou-se do professor; em pé, ao lado dele, encostou-lhe o seio à boca. Tomás não resistiu. Abraçou-a pela cintura e começou a chupar-lhe o mamilo saliente."
Numa antologia sobre o tema O Erotismo na Ficção Portuguesa do Século XX, (Texto Editora) António Mega Ferreira chama a atenção, no prefácio, para a escassez de obras de cariz erótico fora da poesia, uma "espécie de rasura do erotismo na prosa narrativa". Isso leva a que Frederico Lourenço sempre que escreve sobre sexo se refugie na "conceptualização".
Motivos? Apontam-se alguns. Francisco José Viegas, como Frederico Lourenço, vai ao vocabulário. "Talvez o problema seja da linguagem à matéria sexual. O nosso vocabulário de sexo é muito pobretanas; não temos a malícia brasileira, evidentemente, onde 'pau'; é 'pau' e não 'pénis', 'pixota', 'pila' e outras coisas que transformam qualquer cena de sexo num fragmento de pornochanchada alemã." Ou, como prefere Lourenço, é fácil cair na pornografia, na obscenidade". Por isso, declara a sua incapacidade de escrever sobre o assunto. "Não consigo."
Encontrar a palavra. Essa a grande dificuldade segundo Miguel Sousa Tavares, autor do romance Equador e do recente O Rio das Flores. "O problema não é o conteúdo. É o mesmo que escrever sobre uma casa, uma paisagem. Escrevo sobre o que existe. O sexo existe e escrevo sobre ele. A dificuldade é não cair no mau gosto e aí a língua portuguesa não facilita. Como se descreve, por exemplo, o peito de uma mulher? O idioma é muito rico em muitos aspectos, mas não no sexual. Ou temos o palavrão ou a palavra pirosa." Como salienta Francisco José Viegas, "todos temos uma lista de frases assassinas para recordar. Às vezes são, até, descuidos nossos".
Descuido dos escritores, sublinhe-se. Vasco Graça Moura chama a atenção para o risco de se cair facilmente na pornografia. "Pornográfico é o erótico visto de muito perto", refere o escritor. José Rodrigues dos Santos, autor do trecho atrás transcrito, tem menos pudores e confessa que não se sente limitado pelo vocabulário. "Em arte não há regras. O que uns acham horrível, outros acham belo", declara o autor do recente O Sétimo Selo (Gradiva). Para ele não existem "dificuldades especiais além das inerentes à escrita ficcional. Tudo é possível, desde o verosímil ao inverosímil", " até o ultrajante"...
Faltarão mulheres a escrever sobre o assunto, como sugeres Viegas? "Talvez a linguagem evoluísse, se se libertasse, ou melhorasse bastante. Desde que escrevessem sobre sexo e não sobre fisiologia ou males da alma. O romance português vive ainda uma fase pedagógica e didáctica, onde cada cena de sexo é acompanhada de uma teoria, chamando a atenção para a raridade dos orgasmos ou para a delicadeza da situação. Se me perguntassem directamente, sim, diria que se fode mal na literatura portuguesa."
Margarida Rebelo Pinto confessa o gosto por estas passagens. "Escrever sobre erotismo mexe com as vísceras, com o que temos de mais básico." Não se vê a cair no mau gosto. "Pinto o mundo de cores suaves e, mesmo quando sou crua, não tenho medo das palavras nem de cair em coisas vulgares porque acho que não vou lá parar. Mas não travo nada."

Escritores eróticos procuram-se

por Diana Garrido, Publicado
em 09 de Dezembro de 2009

Há literatura erótica em Portugal? Quem a escreve? Falámos com autores, editores e escolhemos algumas passagens dos poucos livros que existem
"Que puta de tesão o homem me dava! [...] Imagina a sensação de estar só, de repente, tudo! Tudo surge limpo e claro e terno e nu [...] Desejo que me matava, voava e morria ao mesmo tempo, morria e voava."Vera Galpe, um pseudónimo "tirado de uma lista escrita por amigos" demorou um ano a escrever "Vírgula, Caralho" e dois a corrigi-lo. A obra "nasceu da vontade de escrever sobre desejo e sexo". "Tinha acabado de ler 'As Onze Mil Vergas' de Apollinaire, fez-me rir de tanto horror. Eu não queria horror. Estava apaixonada. E decidi escrever a minha versão do mundo entre as pessoas." O livro, editado em 2007 pela Asa, de capa rosa-choque, não desvenda a identidade por trás das palavras sem pudor, às vezes agressivas e quase sempre cruas. Para Vera "o sexo é o corpo cheio de vida, o amor a querer passar, é o poder de rasgar". Escreve porque precisa e diz que quando o faz se sente "quase feliz". Os textos saem-lhe da imaginação, que alimenta com vários autores estrangeiros, já que em Portugal há poucos escritores do género. Segundo Vera Galpe, isso tem a ver com as limitações do país: "O preconceito existe e não me parece que vá desaparecer. Os homens e as mulheres desta terra são silenciosos. Nesta terra fode-se às escuras."Os especialistas
Para Francisco Lyon de Castro, da editora Europa-América, a pouca quantidade de obras eróticas de autores portugueses está relacionada, também, com o mercado: "É muito pequeno. Por outro lado, as cadeias de hipermercados e vários livreiros não apostam neste tipo de literatura, por uma questão de pudor, de censura, classificando as obras, várias vezes, como livros pornográficos."Carlos da Veiga Ferreira, editor da Teorema, também acha que a questão se prende com "o pudor e o preconceito que ainda existe. Em segundo lugar a escrita erótica é muito difícil, já que a fronteira entre o erotismo e a pornografia é muito ténue." Para Carlos, essa fronteira é feita "através da qualidade literária. Não são os temas nem a linguagem, é a qualidade da escrita". A Teorema, que publicou uma colecção erótica intitulada Canto Nono, tem, no entanto, poucos livros editados e apenas um de autoria portuguesa: "O nosso objectivo era apresentar literatura erótica de qualidade e isso é muito difícil conseguir." Carlos acredita que haverá muita literatura deste género na gaveta, mas nas obras mais recentes a linha erótica é pouco explorada. "Parece haver uma espécie de pudor em abordar esse tipo de temas." Joana Almeida é psicóloga, sexóloga e formadora de workshops de escrita erótica na Escrever Escrever (www.escreverescrever.com). O objectivo é "libertar a vergonha, fazer com que se deixem levar pelas fantasias, brincar com os tabus".O facto de haver tão poucos autores dedicados a este género pode "ser reflexo de uma cultura com muitos tabus e pouco desinibida". Quanto à dificuldade da escrita deste género, há certas questões a ter em conta: "Muito erotismo pode ser considerado pornografia para algumas pessoas. O que é excitante para uns pode ser ofensivo para outros. Na minha opinião é positivo que o erotismo não tenha uma linha clara e definida como, por exemplo, os filmes pornográficos têm. Explorar fantasias e fetiches pode ser saudável."As mulheres no erotismo "Então, pela primeira vez, masturbei-me à luz do dia, com o sol a entrar a rodos pelos vidros martelados da casa de banho. Toda nua e molhada, encharcando o chão e sem me ralar com isso [...] sentindo o sol e os olhos do mundo a baterem-me nas costas [...]" A personagem de "Todo o Começo É Involuntário" é uma mulher cujos desejos foram sempre estrangulados por uma mãe controladora e puritana. A sua autora, Maria Isabel Moura, escreveu o livro "para testar as garras". "É um tema muito difícil e queria ver se conseguia manter-me na raia o mais possível. A fronteira entre o erotismo e a pornografia é muito ténue e está na escrita. Uma escrita sem qualidade e entra-se na pornografia. É uma questão estética."Segundo Carlos da Veiga Ferreira, a obra é "um romance erótico muito forte". O livro, que pertence à colecção Canto Nono, da Teorema, tem prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, que considera a autora "uma contadora de histórias na linha de Sade, Henry Miller e Anaïs Nin". A comparação agrada-lhe: "Fiquei muito lisonjeada porque era o que pretendia. São três ícones do erotismo e ser comparada a esse nível é uma honra." Maria Isabel Moura, natural da Covilhã e colaboradora do "Jornal do Fundão", escolheu não se esconder atrás do anonimato nem de um pseudónimo: "Entrei no 25 de Abril já mulher e aprendi que temos de fazer as coisas pelos nossos próprios pés, temos de enfrentar as coisas de caras. Choques violentos são necessários em qualquer época. E eu queria ser confrontada, queria dar muitas explicações. Mas isso não aconteceu e não faço a mais pequena ideia porquê."Sexo Off the Record "Quando o querer é verdadeiro, amar e foder significam exactamente a mesma coisa." Para Paula Santiago, pseudónimo de uma jornalista de 37 anos, a fronteira entre erotismo e pornografia está "no sentimento e na escolha das palavras". O seu livro, "Sexo Off the Record", é uma obra autobiográfica que descreve as aventuras sexuais e sentimentais de uma estagiária com o seu editor, na redacção de um diário do Norte. A aventura começou no blogue "Palavras Quentes" em jeito de diário aberto a todos. Por outro lado, quis testar-se e perceber se seria capaz de "escrever textos eróticos sem descambar para a pornografia". "A maioria dos blogues que lia, ao fim de três linhas tornavam-se pornográficos, um bocado como os filmes. Eu quis escrever uma história suave, que não fizesse corar ninguém, que as pessoas não tivessem de se esconder para ler." Foi por isso que quando surgiu o convite da editora 7 Dias 6 Noites, a autora não hesitou. Quanto ao pseudónimo, pretende mantê-lo: revelar a verdadeira identidade não está nos seus planos, já que não sabe que consequências isso traria para a vida profissional e familiar. "Ainda há muito preconceito e muitos tabus."

terça-feira, 16 de março de 2010

Caetano (Exercício)


Uma mulher de pele escura atravessou-se à sua frente, exibindo um colorido turbante no cima da cabeça. Sentiu o seu aroma, levemente aromatizado a citrinos, e desejou possuí-la, ali mesmo, no largo do Chiado. Decerto que os transeuntes não se importariam de ver os seus corpos cantar o fado ao amanhecer.
Caetano andava sempre com o cabelo arranjadinho, as unhas castanhas do surro, o fecho das calças aberto e dele uma pila a apanhar ar fresco. Adorava vê-las passear e imaginar-lhes a cona. Camões não o recriminaria, era o seu fiel companheiro, estava ali para apoiá-lo nas horas do vinho. Além disso, a seu ver, todas eram esbeltas, fossem gordas, anafadas, magras, esqueléticas. Em todas era capaz de enfiar o seu besugo e desejava-o tanto, ansiava-o tanto... Mas coitado Caetano... morreu virgem.

terça-feira, 9 de março de 2010

O Abraço da Ursa Húngara


«A missa deve estar quase a começar», disse com a voz ainda oscilante. Pegou num lenço de renda preto, cobriu o cabelo e o pescoço e saiu de casa. De facto, o olhar terno e imaculado de Alenka parecia carregar consigo a ideia de um túmulo capaz de guardar os segredos mais íntimos. E ele sabia-o.
Ia tocar à campainha quando reparou que a porta estava entreaberta. «Estás aí? Posso entrar?», sussurrou. «Entra, estou no quarto», respondeu Alenka. Encontrou-a deitada no tapete de pêlo cinzelado, contorcendo o seu corpo franzino, como se o diabo tomasse as rédeas do seu corpo.
Gabor estava ainda de pé, com as calças caídas, quando Alenka lhe engoliu o tronco do pénis, simulando uma penetração comum. Lambia-o para cima e para baixo com a ponta da língua e beijava-lhe a cabeça de frade, imprimindo uma ligeira pressão com os dentes. Subitamente, Alenka abocanhou-lhe a bolsa do escroto, sugando os testículos alternadamente. As ondas eléctricas de prazer que se dispersavam, como faíscas, pelos pontos erógenos do corpo de Gabor incitaram-no a empurrar Alenka para trás e a sentar-se na borda da cama. Por pouco que não se veio. Chamou-a novamente, sem pronunciar uma palavra. Acima de tudo, desejava possui-la, aconchegá-la e assim Alenka poisou as bochechas do rabo no seu colo, sentindo finalmente o pénis duro como o tronco de uma árvore beijar-lhe os lábios e trepar-lhe a vulva. Enlaçou as pernas franzinas à sua cintura, chegando-se a ele o mais possível de forma a tornar a cópula mais intensa. O abraço era activo, suplicava posse, e ela provocava-o, movendo os quadris com brutidão. Os olhos de Alenka estavam fechados, dando asas à imaginação das mãos que acariciavam aquele corpo macio, «cheio de graça». Os seus sexos pareciam soluçar, deitavam lágrimas de prazer.
Os dois pareciam envoltos num duelo recíproco, ele puxando-lhe o cabelo âmbar que, como uma cortina, encobria as auréolas róseas dos seus seios, ela arranhando-lhe as costas largas e transpiradas. O tacto molhado das línguas e dos dentes parecia instigar um braço de ferro cada vez mais inquietante e os corpos fundiam-se numa espiral de sensações erógenas, rendidos à fluidez do outro, sentados no silêncio que ecoava pela casa. A temperatura subia e num impulso, o clímax estalou em infinitas pepitas de ouro.
Enquanto Alenka caminhava para a Igreja, começou a sentir o esperma escorrer-lhe lânguido pelas pernas. Dois miúdos que passavam com a mochila às costas cochicharam qualquer coisa ao ouvido e desataram-se a rir. «Será que tenho a saia molhada?», interrogou-se, atraiçoada pelo carmim das bochechas. Apesar do constrangimento, Alenka orgulhava-se daquela sensação de transgressão, de ousadia, de individualidade, sobretudo. No banco da frente, virada para o altar-mor, inclinou a cabeça e ajoelhou-se perante Deus.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A primavera que entoou no seu regaço


O amante de segunda colou-se à página do livro e manchou as palavras de Dali, «do método que o ultrapassava então», quando Helena pulou da cama para dar um risco de coca à janela, em picos de pés, encarrapitando-se no parapeito ascendente da vida. Aspirava com o olhar o voo das aves marítimas e voava ao seu lado sem roupas e os globos oculares gotejavam tal era a pressão do ar; pusera-se nevoeiro e de repente perdeu-as de vista e caiu amortecida pelo peso do seu regaço, das suas coxas, dos seus braços, do seu ventre.
Pôs o livro de parte, provavelmente na gaveta da mesa-de-cabeceira, junto aos tampões amorfos para os ouvidos, e pensava como era bom lambuzar-lhe o comprimento, as veias, as protuberâncias laterais, com a mesma voracidade com que uma criança chupa um calipo num fim de tarde escaldante.
Helena estava deitada com uma serpente que além de lhe ter dilatado as pupilas, fê-la atirar a realidade para trás das costas e levantar voo, concentrando-se no mistério genital inflamado, nas pequenas gotas que se transformaram numa capa húmida. Brincava com a parte inferior do objecto fálico, andava à roda com ele, apressava-o ou então incentivava-o a passear pela púbis, arbúscula de pêlo. Os grandes lábios, reflectidos no espelho, adensavam e projectavam-se para fora, como a boca faminta de um peixe do rio; e a fenda delicada expandiu-se em flor, flexível à grossura do objecto vibrante.
Toda aquela agitação fez os pés da cama ranger, mas só ela pareceu não ouvir o ruído no momento em que a sua vagina sofreu uma contracção mais forte e se agarrou ao pénis falso, como fazem as raízes em terreno fértil. Desta vez, preferiu não proferir palavras ordinárias, não gemer, não gritar. Deixou que o prazer viesse ao seu encontro. Esticou-se na cama, com um dos joelhos dobrados e o braço esquerdo debaixo da almofada e, ao olhar-se ao espelho, viu a silhueta de uma mulher-estátua envolvida em pó de gesso.
O que mais lhe dava gozo depois de atingir um orgasmo era ver o corpo desintumescer, a sensação de alívio que dava o mote a longos monólogos interiores, nos quais se juntavam o pai, os irmãos e o avô numa zaragata tão grande que logo fugia para o deserto, enterrando os braços e as pernas na areia quente, tornando-se enfim uma miragem.
Apanhou o livro do chão e esticou um risco veloz na página manchada que citava: «Um dia, esvaziei completamente o interior de um bocado de pão, e que pensam que coloquei no seu interior? Um pequeno Buda de bronze, cuja superfície metálica enchi de pulgas mortas. Depois, fechei a abertura do pão com um pau, cimentei tudo... de modo a formar um todo homogéneo, como se fosse uma pequena urna, no cimo da qual escrevi: Compota de cavalo. O que significava isso?»

*Desenho de David Antunes