quarta-feira, 3 de março de 2010

A primavera que entoou no seu regaço


O amante de segunda colou-se à página do livro e manchou as palavras de Dali, «do método que o ultrapassava então», quando Helena pulou da cama para dar um risco de coca à janela, em picos de pés, encarrapitando-se no parapeito ascendente da vida. Aspirava com o olhar o voo das aves marítimas e voava ao seu lado sem roupas e os globos oculares gotejavam tal era a pressão do ar; pusera-se nevoeiro e de repente perdeu-as de vista e caiu amortecida pelo peso do seu regaço, das suas coxas, dos seus braços, do seu ventre.
Pôs o livro de parte, provavelmente na gaveta da mesa-de-cabeceira, junto aos tampões amorfos para os ouvidos, e pensava como era bom lambuzar-lhe o comprimento, as veias, as protuberâncias laterais, com a mesma voracidade com que uma criança chupa um calipo num fim de tarde escaldante.
Helena estava deitada com uma serpente que além de lhe ter dilatado as pupilas, fê-la atirar a realidade para trás das costas e levantar voo, concentrando-se no mistério genital inflamado, nas pequenas gotas que se transformaram numa capa húmida. Brincava com a parte inferior do objecto fálico, andava à roda com ele, apressava-o ou então incentivava-o a passear pela púbis, arbúscula de pêlo. Os grandes lábios, reflectidos no espelho, adensavam e projectavam-se para fora, como a boca faminta de um peixe do rio; e a fenda delicada expandiu-se em flor, flexível à grossura do objecto vibrante.
Toda aquela agitação fez os pés da cama ranger, mas só ela pareceu não ouvir o ruído no momento em que a sua vagina sofreu uma contracção mais forte e se agarrou ao pénis falso, como fazem as raízes em terreno fértil. Desta vez, preferiu não proferir palavras ordinárias, não gemer, não gritar. Deixou que o prazer viesse ao seu encontro. Esticou-se na cama, com um dos joelhos dobrados e o braço esquerdo debaixo da almofada e, ao olhar-se ao espelho, viu a silhueta de uma mulher-estátua envolvida em pó de gesso.
O que mais lhe dava gozo depois de atingir um orgasmo era ver o corpo desintumescer, a sensação de alívio que dava o mote a longos monólogos interiores, nos quais se juntavam o pai, os irmãos e o avô numa zaragata tão grande que logo fugia para o deserto, enterrando os braços e as pernas na areia quente, tornando-se enfim uma miragem.
Apanhou o livro do chão e esticou um risco veloz na página manchada que citava: «Um dia, esvaziei completamente o interior de um bocado de pão, e que pensam que coloquei no seu interior? Um pequeno Buda de bronze, cuja superfície metálica enchi de pulgas mortas. Depois, fechei a abertura do pão com um pau, cimentei tudo... de modo a formar um todo homogéneo, como se fosse uma pequena urna, no cimo da qual escrevi: Compota de cavalo. O que significava isso?»

*Desenho de David Antunes